A pandemia deixou clara a fragilidade conceitual de muitos eventos. Frente à digitalização, pôde-se perceber que muitos festivais possuem como principal ativo a limitação geográfica, antes mesmo da programação musical em si. O diferencial de um evento desse tipo é simplesmente deter as ferramentas (leia-se “dinheiro”) para realizar um evento em determinada região. Dadas as distâncias que dificultam o deslocamento (ainda mais em um país com as dimensões do Brasil), reproduzir programações e modelos de outros eventos já consolidados é (ou foi) um negócio com grande potencial de lucro. Mesmo que o evento X seja praticamente idêntico ao evento Y, ao serem realizados em cidades (ou Estados) diferentes, isso então significava, em grande parte, públicos diferentes. A lógica não vale para eventos gigantes que possuem grandes atrações internacionais, como Rock in Rio e Lollapalooza. Nesses casos, a exclusividade de suas programações estrangeiras é um dos principais diferenciais.

A transposição do modelo presencial para o virtual explicitou a falta de identidade entre eventos. Uma vez que muitos festivais compartilhavam as mesmas atrações, como se diferenciar? Nesse formato deixam de existir “o festival de Belém, o festival de Goiânia”, para serem todos festivais realizados ao alcance de qualquer pessoa conectada. E como isso impacta a carreira dos artistas? Existem pontos negativos e outros positivos nesse cenário.

Falta de identidade e diferenciação

Festivais mais genéricos, sem uma linha estética bem definida, são os mais afetados. Vou usar de exemplo alguns artistas que tocaram muito no circuito de festivais focados na “nova música brasileira” em 2018/2019: Duda Beat, Baco Exu do Blues e Carne Doce. Nos últimos anos foi comum encontrá-los nos mesmos festivais e não havia muito problema, uma vez que se tratavam de plateias distintas. Eles poderiam viajar juntos pelo país e tocar cada dia em um evento, em cidades diferentes, porque as limitações físicas fariam com que o público de cada apresentação não se repetisse. Da mesma forma, mesmo sem grandes diferenciais entre si, um mesmo patrocinador poderia investir em diversos eventos nos quais o trio se repetisse.

Não é preciso muito esforço para perceber que a mesma lógica é impraticável online no formato atual. Uma vez derrubada a principal barreira (a presença física, a materialidade), todos os eventos digitais compartilham o mesmo espaço. Ao migrar para a internet, tanto faz o local de origem de cada evento. Uma live da Duda Beat significa que, naquele mesmo mês, ela possivelmente não fará outro show online, a menos que seja outro repertório, outro material a apresentar, porque potencialmente todo o seu público já teve acesso àquela apresentação. Isso envolve várias questões.

Remuneração

Se uma live aberta impossibilita a realização de outros shows por um período estendido, significa que os artistas farão menos apresentações, mas em contrapartida serão mais bem pagos? Isso dependeria de patrocínios ou de um grande engajamento de público que remunerasse o artista mesmo sem uma cobrança obrigatória, o que é muito difícil.

Shows fechados

Na ausência de patrocínios, essa é uma alternativa para artistas de pequeno e médio porte. Abrir mão do potencial virtualmente ilimitado de cada performance online para atingir públicos restritos, tornar a experiência mais pessoal e limitar a oferta (mantendo, assim, a demanda por mais shows). Nesse sentido, ausência de registro permanente aproximaria o online da apresentação presencial (apesar de ser explorando uma de suas limitações).

Repertórios distintos

Aqui, o risco é grande. Pense nas pessoas que inventam projetos comemorativos para vender para o Sesc em São Paulo, só que em escala nacional. Na ausência de criatividade, novas composições ou de repertório suficiente para executar vários shows diferentes, corre-se o risco de repetir as batidas participações especiais e shows que revisitam obras de outros artistas. Baco Exu canta Gil, Carne Doce canta Charlie Brown Jr (apenas usando os mesmos artistas de exemplo, sem querer dar ideia errada a ninguém).

Escalabilidade

Em sua essência, o custo para se produzir um evento online é o mesmo, independente do público que você atingir (pensando na parte técnica que torna possível a transmissão). Tendo em mente o Youtube, por exemplo, tanto faz se são duas ou 100 mil pessoas assistindo, o seu custo para colocar uma transmissão no ar será o mesmo (o nível da produção é que definirá os custos, como quantidade de câmeras, cenário, experiência dos profissionais envolvidos e afins). Isso faz com que festivais e outras produções possam atingir além do público local, em escala ampliada. Isso significa vender ingressos para pessoas em qualquer lugar do mundo mas também divulgar os patrocinadores do evento em larga escala, o que pode ser um diferencial na hora de negociar a captação de recursos. O exemplo máximo é o festival belga Tomorrowland. Ele teve público de cerca de 400 mil pessoas nas últimas edições e, em 2020, foram mais de um milhão de pessoas online (com venda de ingressos).

Maior diversidade nas programações

Esse é o ponto mais otimista. Uma vez que passam a conviver no mesmo ambiente, os eventos precisam se diferenciar não apenas dos festivais realizados em suas cidades de origem, mas em um espectro muito mais amplo. Nada de repetir a mesma banda em todo o circuito de festivais. Com isso, é necessário maior esforço de curadoria que pode beneficiar mais artistas. Nada de Duda Beat, Baco e Carne Doce de novo. Hora de trabalhar de verdade e deixar de ser aquele tipo de festival que repete sempre as mesmas bandas (não vou citar nomes mas tenho certeza que você se lembrará de alguns).

Enquanto a pandemia persiste…

Grandes festivais internacionais como Coachella e Primavera Sound cancelaram suas edições de 2021. O Coachella transformou seu site basicamente em uma loja. O Primavera Sound seguirá apenas com seu Primavera Pro, evento dedicado a profissionais do mercado musical, que será realizado em formato híbrido.

Até o momento em que escrevo este texto (em 2.3.2021) grandes festivais brasileiros, como Lollapalooza Brasil ou Coala, ainda não anunciaram seus cancelamentos em 2021. Enquanto o Brasil bate seguidos recordes de mortes diárias devido à Covid-19 e o sistema de saúde está próximo do colapso, instituições como a Abrape – Associação Brasileira de Produtores de Eventos fazem lobby em Brasília pela retomada de eventos presenciais, apoiados por políticos de partidos como Dem, PSD e PSL.

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