A pausa forçada em parte do setor cultural pode ser o momento para se repensar o tipo de produção cultural que fazemos. Pensar, por exemplo, na forma como a cultura pode ajudar a diminuir a desigualdade no país em vez de reproduzir formatos que a reforçam. Existe a questão da democratização do acesso à cultura, fundamental, pela ótica do público. Mas do lado de quem cria pouco se faz para que as formas de produção sejam mais democráticas.

Oportunidade para quem?

Quando um festival recebe centenas de milhares de reais de grandes empresas ou do governo e oferece um cachê ridículo para pequenos artistas (isso quando oferece cachê), sem cobrir os custos de logística, qual tipo de artista vai se encaixar nessa proposta em troca da exposição em fazer parte do evento? Na maioria dos casos, os de classe média/alta (em geral, brancos) que possuem e$trutura para arcar com os custos e inve$tir em suas carreiras. Com a reprodução desse formato em todo o país, são esses artistas que vão circular e se consolidar, integrados a um sistema excludente. Aos outros, é negada a oportunidade desde o início (chamar um artista quebrado sem arcar com os custos não é oferecer uma oportunidade). E assim o ciclo da classe média e alta nos palcos se repete para sempre.

Óbvio que na maioria dos casos os novos artistas não levam muito público. A questão é que se um evento possui patrocínio/apoio pra sua realização, ele deve fornecer as condições mínimas para que artistas de diferentes origens possam participar. Não adianta criticar o Enem online por ser excludente e reproduzir a mesma lógica nos eventos. Oferecer R$ 1.000 ou menos (e nada de logística) para uma banda cruzar o país pra tocar em um evento cheio de patrocínios não é abrir espaço para novos artistas, é convidar a elite.

Uma mudança lenta, porém necessária

Trata-se de uma mudança que não vai dar tanto holofote imediato, portanto os departamentos de marketing não se importam com essas questões. Não vão rolar # superficiais sobre o tema.

É essencial, ainda mais no Brasil, colocar mais mulheres, pretos, LGBT nos eventos. Só que vai muito além do espaço, é preciso pensar na remuneração desses artistas. Um cachê de R$ 3 mil não é nada para um bando de hipsters paulistanos mas pode ser o estímulo para um artista da periferia continuar, melhorar seus equipamentos ou simplesmente viver.

Talvez as bandas mais ouvidas, as mais bem preparadas atualmente, sejam, em sua maioria, de pessoas das classes mais altas (isso no meio ~indie~, do qual tenho mais propriedade pra falar). Para que a produção artística seja mais diversificada e democrática a mudança tem que começar de algum lugar. A mudança é com o tempo.

A desigualdade reproduzida na produção cultural

Um artigo relevante sobre o assunto é Learning to labour unequally: understanding the relationship between cultural production, cultural consumption and inequality, escrito por Kate Oakley e Dave O’Brien, respectivamente da Universidade de Leeds e da Universidade de Londres. No texto, abordam a questão da desigualdade na produção e consumo de cultura com foco na questão das classes sociais de seus agentes.

A cultura e as chamadas indústrias criativas são marcadas por um discurso de classe média que se beneficia de sua posição social como instrumento de diferenciação e de posicionamento. Conforme mostrado pelo artigo citado, práticas comuns no meio cultural beneficiam os membros de classes mais privilegiadas.

A suposta liberdade presente na economia criativa é sustentada não apenas pelo trabalho em si, mas pelo contexto social no qual os trabalhadores da cultura estão inseridos. Pessoas de classes sociais mais baixas, com mais compromissos financeiros fixos, têm maior dificuldade em poder trabalhar de graça em troca de experiência, fazer trabalhos voluntários ou lidar com a instabilidade do setor de eventos, por exemplo.

As classes dominantes criam meios para valorizar seu próprio estilo de vida e as manifestações culturais que refletem sua visão de mundo, disfarçados de ativismo social como meio de obter mais patrocínios.

Aqui, pausa para contar um caso.

Eu fazia parte de um grupo de WhatsApp com produtores de várias partes do país, de perfis distintos. Certo dia, vários produtores reclamavam das dificuldades em se ter voluntários trabalhando de graça, por causa da burocracia envolvida. Um deles disse que o setor jurídico da empresa barrava esse tipo de estágio sem remuneração pra evitar problemas, o que era uma pena. Pense no nível de cretinice. Uma produtora que tem um SETOR JURÍDICO querendo que as pessoas trabalhem de graça para ela. “Estamos dando uma oportunidade para essas pessoas, uma chance única”. Na sequência, outro produtor respondeu que era foda, que eles tentavam ajudar e depois os empresários eram tachados de malvadões e o governo de bonzinho. Eu deveria ter respondido como o Augusto. Ps: não faço mais parte do grupo.

Às vezes, quando ouço demos de bandas famosas gringas, penso em como elas eram ruins no início. Se elas não tivessem as mínimas condições de continuar, as mínimas oportunidades, nunca produziriam obras relevantes no futuro. É o tipo de alteração que demanda realmente vontade de mudar por parte de produtores/patrocinadores. Responsabilidade social real e não hashtags e algumas palavras bonitas para fazer propaganda. Uma mudança urgente, principalmente quando o Estado é ausente nesse sentido.

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