Reality show gangsta do Instagram.
Bem vindo ao Show de Truman na versão de uma vilã.

Quando Clara Lima canta os primeiros versos de “Caminhos”, música que abre Selfie, a sensação é de que em breve haverá uma ruptura, um ataque como em “Rap acústico“, do FBC. “A qualquer momento alguém deve entrar e quebrar esse violão”, você pode pensar. #sóquenão É difícil entender como aquela que é de longe a pior faixa do disco foi escolhida como música de abertura. Ou melhor, ao saber que Gee Rocha, do NX Zero, é um dos produtores do disco (ao lado de Go Dassisti), a escolha passa a fazer algum sentido. De qualquer forma, não desista com essa faixa. Apesar de ser um emo pop que emula o que de mais genérico e asséptico se produziu nos anos 00, é uma faixa que destoa do restante do álbum (felizmente).

Selfie é um disco potencialmente pop, positivamente. Seja no funk, trap ou até mesmo quando passa pelo rap acústico, as músicas têm refrões grudentos e as letras abordam temas abrangentes com os quais as massas podem se identificar. As pretensões pop ficam claras nas estruturas das músicas: todas começam já pelo refrão, assim como em diversos hits pop contemporâneos (uma fórmula utilizada para captar a atenção do ouvinte o mais rápido possível e combater o attention span).

A sequência inicial (considerando que apagamos “Caminhos” da memória) é arrebatadora. “Tudo muda” é um funk politizado sem forçar a barra (alô Edgar!) em parceria com Chris MC. “Mas quem não correu por nós, vai correr de nós”, avisa o refrão. Consciência e luta de classe enquanto trilha pra arrastar a raba.

E quanto de nós já morreram pra eu poder tá aqui?
Carrego comigo nosso sonho vivo
E quanto de nós já correram pra chegar até aqui?
Quantos já viveram preso pra hoje nós ser livre?
Pra hoje nós ser livre?
Se hoje o mundo é nosso, o plano deu certo
Um brinde aos negócios, tudo tem seu tempo

A verve pop se mantém com “Talvez bem mais”, uma das melhores músicas do disco e do rap brasileiro de 2019. A letra faz referência ao caminho de Clara no rap. Ela é integrante da DV Tribo, junto de Djonga, FBC, Hot e Oreia e também foi finalista do Duelo Nacional de MCs. A música também se refere ao curta-metragem Nada, do qual Clara é protagonista. O filme foi exibido no Festival de Cannes de 2017 (época em que Clara tinha 17 anos) e é uma produção da Filmes de Plástico, produtora de Contagem (região metropolitana de BH), responsável por filmes como No Coração do Mundo e Ela Volta na Quinta.

“Esquinas” e “Pensando em nós” são as incursões pelo trap, com maior peso na primeira, enquanto “Noite quente de verão” é um sambinha ensolarado que remete a Jair Rodrigues (“Deixe que pensem, que falem, que digam por aí”, diz Clara). “Pássaros” é um rap pop com participação do MC Guimê que se destacaria em qualquer disco do Emicida ou Rael, por exemplo. “Caracóis”, faixa final, é o retrato millennial musical e conceitualmente. Funk, trap e rap acústico como base pra falar de um relacionamento moderno (“Vida que passa e nós tá como? / Querendo tudo e o tempo é pouco / Pense bem antes disso tudo / Que o mundo é moderno e o mundo é louco / Nós tá distante faz um tempo”.

Brincadeiras à parte

sobre a primeira faixa (ou não), a produção de Gee Rocha e Go Dassisti é certeira e contribui para entregar um disco conciso e pop, que deveria receber mais atenção. Seu lançamento no fim do ano (saiu em 22 de novembro de 2019), época em que as atenções já estão voltadas para as festas de fim de ano e listas de melhores já começam a ser publicadas, também pode ter influenciado na resposta morna ao disco. Independente disso, Selfie segue como um bom álbum, um dos melhores do rap em 2019. Ele coloca Clara Lima como uma representante singular de uma vertente mais pop do rap de BH, cuja cena é marcada pela temática e sonoridade mais agressiva de artistas como Djonga e FBC, porém ao mesmo tempo distante da veia cômica de Hot e Oreia.

Clara Lima _ Selfie
Lançamento: 22.11.2019
Selo: Ceia
Produção: Go Dassisti e Gee Rocha

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